quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Aos que querem venerar Atena








Metáforas Metodológicas 
inspiradas por Marx
e pelo mito de Medusa e Perseu


"Comparada com a inglesa, a estatística social da Alemanha e dos demais países ocidentais do continente europeu ocidental é miserável. Não obstante ela levanta suficientemente o véu para deixar entrever, atrás dele, uma cabeça de Medusa. Ficaríamos horrorizados ante a nossa própria situação se nossos governos e parlamentos, como na Inglaterra, formassem periodicamente comissões para investigar as condições econômicas; [...] Perseu necessitava de um elmo de névoa para perseguir os monstros. Nós puxamos o elmo de névoa sobe nossos olhos e ouvidos para poder negar a existência dos monstros."

KARL MARX. Prefácio da primeira edição. In: O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. (p.79). 894p.

A realidade histórico-social concreta, a empiria bruta, representa para um cientista social como Marx, o mesmo que a Medusa para Perseu.

A totalidade social em sua concretude empírica pode ser metaforicamente descrita como "empiria medúsica". Medusa era a linda sacerdotisa da Deusa da Sabedoria que, seduzida pela força das paixões, entregou-se a Poseidon no próprio templo de Atena e foi castigada pela Deusa que  a converteu em uma Górgona, monstro horrível com cabelos de serpentes capaz de transformar em pedra aqueles que ousam olhá-la de frente.

Aqueles que – devotos da Deusa da Sabedoria como Perseu – querem aventurar-se a controlar esse poder, só podem fazê-lo, usando de doses heróicas de coragem e esperteza, de ousadia e disciplina. Contar só com a pura coragem-ousadia, ou, ao invés, só com a pura esperteza-disciplina leva o infeliz à inevitável transformação em pedra no grotesco jardim da Medusa.

Da realidade concreta, portanto, é recomendável só se aproximar com muito cuidado e após muita preparação. As provas que Perseu teve que enfrentar antes de confrontar-se com a Medusa servem de modelo dos obstáculos que se interpõem no caminho do cientista social. Perseu teve que roubar um olho e um dente de três velhas irmãs cegas e banguelas e chantageá-las, apenas para que estas lhe entregassem um segredo fundamental. Descobriu, assim, o refúgio das Ninfas e visitou-as, mas, diferentemente de todos os homens que as buscaram, apenas para pegar emprestado armas e instrumentos forjados pelos deuses.

Mesmo após estar treinado, preparado e equipado com os melhores instrumentos e metodologias, o cientista social só pode aproximar-se do concreto empírico adotando atitudes estranhas e contrárias ao senso comum. Recusando firmemente olhá-la diretamente e andando de costas (fazendo o percurso lógico inverso da aparência à essência), devagar, silenciosamente, passo a passo, e mirando a empiria apenas pelo seu reflexo no polido escudo dado pela Deusa da Sabedoria, o cientista social deve aproximar-se de seu objeto empírico sem despertar as Górgonas de seu sono.

Com coragem e destreza deve aproximar-se de seu objeto concreto até estar tão perto, tão íntimo, que possa alcançá-lo, como Perseu, à distância de um golpe de foice. Após longa e perigosa jornada, pode o cientista social finalmente dominar seu objeto empírico e, como Perseu, pode, de um só golpe, decepar a Medusa, mas só o pode fazê-lo de olhos fechados! O perigo de ser petrificado é proporcional à proximidade entre observador e objeto.

Consumado o domínio do objeto pelo cientista social, não cessam os perigos, pelo contrário. Como no mito de Perseu, o objeto concreto, agora “abstraído”, deve ser agarrado pelos cabelos de serpentes e convenientemente embrulhado, colocado dentro do saco dado pelas Ninfas, seguro e embalado é agora uma "abstração razoável", tudo sem desviar os olhos do reflexo no espelho/escudo de Atenas. Ceder à tentação de olhar a Medusa, mesmo depois de decepada, significa igualmente ser derrotado pela petrificação do concreto real, ser assimilado à concreção.

Essas tarefas heróicas devem ser executadas e concluídas, ademais, sob a pressão do iminente despertar das duas Górgonas irmãs imortais de Medusa, que rapidamente vem reclamar sua vingança. Tolos são os que comemoram sucessos, pois a pequena parte do real que conseguem decifrar é apenas, como a Medusa, a irmã mortal das outras duas Górgonas imortais e infinitamente horripilantes a lembrar de sua pequenez diante da densidade e profundeza do real.

Para sair vivo do confronto com seu objeto, ao cientista social não basta não olhá-lo de frente. Após apreendê-lo, abstraí-lo e pensá-lo é preciso também que seu objeto não o veja e não o encontre. É preciso se esconder das conseqüências da alteração do estado do observador e do objeto provocadas pela erupção da consciência, da cognição. É preciso escapar do círculo concreto das Górgonas o mais rápido possível, agarrando-se às suas armas e instrumentos.

As Górgonas são como o capital, infinitamente obcecadas por si mesmas. Transformam em coisa todos ao seu redor, como o capital transforma tudo em objeto da valorização do valor. Repetindo esse desígnio eternamente, tresloucadamente, completamente livre de quaisquer limites. Os olhos das Górgonas perseguem os inimigos com raios ideológicos petrificantes poderosíssimos, mas elas também tem asas, garras, presas e uma bocarra assustadora com a qual devoram os incautos. Perseu só saiu vivo após decepar a Medusa devido a um capacete que lhe conferia invisibilidade dado por Hades e um par de sandálias aladas dadas por Hermes que lhe permitiu escapar voando.

Escapando ileso, o cientista social poderá, se quiser, transformar o mundo e não ficará limitado a eternamente observá-lo e interpretá-lo como uma figura petrificada. De sua aventura, no entanto, nada poderá tirar ou guardar para si. Deverá devolver suas armas e instrumentos aos legítimos donos e depositar a cabeça decepada da Medusa aos pés da Deusa da Sabedoria para que essa venha a ornamentar sua armadura.

Emergida de uma dor de cabeça de Zeus, já toda armada e equipada, a Deusa da Sabedoria é exigente e inflexível com aqueles que pretendem venerá-la.




sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Avida Dollars




Quantos ANAGRAMAS você consegue formar com SALVADOR DALÍ?

Salvador Dalí não produziu seus próprios anagramas. O iniciador da prática foi André Breton, que queria denunciá-lo como traidor do Surrealismo e por seu gosto excessivo pelo exibicionismo e pela notoriedade. O poeta compôs um anagrama com o nome de Salvador Dalí: Avida Dollars. Parece que o ataque não funcionou bem... Dalí adorou e assim se pronunciou mais tarde: 

      "No era un hallazgo de gran poeta [...] sin embargo debo reconocer que se ajustaba a mis ambiciones inmediatas de entonces. [...] El anagrama Avida Dollars constituyó un talismán para mí. Rindió generosa, dulce y monótonamente un manantial de dólares".


Julio Cortázar dizia que avaliava as pessoas por meio de sua opinião sobre Dalí. Se dissesse: "Era um magnífico filho da puta!" era uma boa sinalização. Por outro lado, se a pessoa dizia: "Deixando de lado sua pintura, mas ele é um ser moralmente desprezível." saía rapidinho, pois sabia estar diante de uma pessoa "distinta" sem qualquer possibilidade de diálogo. Assim, propôs seu próprio anagrama, com um trocadilho de Dalí com Dalila: 

     Suas tesouras tosaram um monte de Sansões excessivamente seguros de sua força moral. Algum dia, talvez a humanidade possa fazer sua história sem pessoas como Dalí; por ora se limita a negá-lo com o triste sistema do leproso que cobre os espelhos da casa. Ao anagrama famoso e justo e latino Avida Dollars eu contraponho este outro mais amável e simbólico e francês com o qual me despeço: Dors, Dalila, va. (Último Round, tomo II, pp.214-219).

Seguindo estes dois grandes Mestres Fundadores desse magnífico jogo, propomos o desafio do sub-título desta postagem. Vão aí as regras:


1.usar todas as letras das palavras SALVADOR DALÍ reordenando-as (não vale acrescentar ou retirar consoantes e vogais, a frase final deve ter as mesmas 12 (doze) letras: 1S, 3A, 2L, 1V, 2D, 1O, 1R, 1I)
2.ignora-se sinais gráficos (acentos, vírgulas, etc.)
3.vale misturar palavras de várias línguas;
4.vale abreviar, contrair, alterar, desde que o sentido seja claro e não pareça (muito) forçado;
5.não valem anagramas bobos (por ex; DAVID ROLA SAL), deve ter um mínimo de sentido (poético, irônico, etc.)
6.enfim, vocês entenderam... 


Convido, então, quem quiser, a comentar com mais alguns ANAGRAMAS DE SALVADOR DALÍ e dou minha modesta contribuição abaixo com dez novos anagramas:



1. AVIDA DOLLARS (ANDRÉ BRETON - Latim/Inglês = Ávido por dólares)


2. DORS, DALILA, VA (JULIO CORTÁZAR - Francês = Dorme, Dalila, à vontade)



3. DIOS LADRAVAL (Espanhol = Deus Covil dos Grandes Ladrões)

4. SAL, ROL DA VIDA (Português = Sal, inventário da Vida; Catalão = Viver, Papel da Vida)

5. SAL A VIDA, LORD! (Catalão/Inglês = Viver uma Vida, Senhor!)

6. OLVIDA SALDAR (Espanhol = Esquece o Equilíbrio)

7. ALL ORS DA VIDA (Inglês/Catalão/Português = Todo Ouro da Vida)

8. DIR, ALAS, VOLAD! (Catalão = Diga, pobre de min, Voa!)

9. LA SALA D VIDRO (Espanhol/Português = A Sala de Vidro)

10. VIOLA D LADRAS  (Português = Viola de Ladras)

11. IL DARDO SALVA (Italiano = O Dardo Salva)

12. LA DIVA DORSAL (Italiano/Português = A Deusa de Costas)


quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A lenda do flautista de Hamelin contada por este blogueiro

Depois um longo e tenebroso tédio... retomamos este blog sobre coisas doces e sujas, pois como diz Padre André João Antonil: "porque tudo que é doce, ainda que imundo, deleita." Antonil. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Lisboa,1711.

Flautas e ratos, assim como crianças, parece que se enquadram no tema.





I
Era uma vez, a cidade de Hamelin no tempo das cruzadas e da peste negra que estava infestada de ratos por todos os cantos de suas casas e ruas, castelos e igrejas.

II
Ninguém gostava dos ratos.
Muito menos de ter que caçá-los, matá-los e queimá-los ou enterrá-los.
Mas as notícias da peste estavam vindo de cidades cada vez mais perto de Hamelin.
E sempre falavam dos ratos que inesperadamente começavam a morrer na frente das pessoas para anunciar as grandes mortandades de homens e mulheres, ricos e pobres, velhos e crianças, causadas pela peste. Os ratos!
Alguém precisava caçar os ratos. Alguém precisava fazer aquele trabalho sujo e nojento.
Mas, entre todos os bons cidadãos de Hamelin, não se encontrava alguém disposto a sujar as mãos caçando aqueles terríveis mensageiros da morte pela peste.


III
Encontrou-se alguém, no entanto, que lembrou de um jovem camponês esquisito que tocava flauta. diziam que falava com plantas e animais e que morava numa cabana pequena bem longe, no meio da floresta, no alto da montanha.
O cidadão lembrou que aquele jovem tinha grande talento para caçar ratos.
Desesperados, com medo da peste, os cidadãos suplicaram ao Prefeito de Hamelin que mandasse buscar o jovem flautista caçador de ratos.
O Prefeito então, encarregou um Assessor de buscar e contratar o jovem flautista caçador de ratos.
O Assessor do Prefeito foi até a cabana do flautista e ofereceu 30 moedas do Prefeito em pagamento para o jovem se ele livrasse a cidade dos ratos.
O jovem aceitou, pois precisava do dinheiro para comprar carvão e sal, já que quase tinha morrido de frio e fome no inverno passado.

IV
O jovem camponês trabalhou duro, procurando e caçando os ratos com as próprias mãos.
Depois do trabalho, todas as noites, o jovem recuperava suas forças tocando sua flauta, lembrando de sua família querida que morreu num incêndio.
Trabalhou tanto o jovem flautista caçador de ratos que depois de um mês eliminou todos os ratos da cidade.
Quando ele terminou o serviço, apareceu na prefeitura para receber seu pagamento.

V
Os cidadãos de Hamelin, no entanto, consideravam o trabalho de caçar ratos, além de sujo, a pior coisa que alguém podia fazer no mundo.
Em vez de receber suas 30 moedas, o jovem flautista caçador de ratos foi desprezado e agredido, foi ridicularizado, exposto ao vexame público e por fim expulso da cidade por uma multidão de cidadãos que não queriam um camponês caçador de ratos convivendo entre eles, muito menos vê-lo ser premiado com 30 das moedas do Prefeito.
Para justificar a violência, os cidadãos inventaram que a música do flautista enfeitiçava os ratos, assim, o jovem camponês, usando de magia, não tivera que fazer nenhum esforço para caçar os ratos, portanto, não merecia receber nada por tal serviço, que além do mais, poderia atrair grandes malefícios para a cidade, por se tratar de magia negra.

VI
As crianças, no entanto, tinham se acostumado com a música da flauta do caçador de ratos que todas as noites tocava doces canções de ninar após o serviço.
Algumas crianças resolveram ir secretamente até a cabana do flautista para escutar novamente aquelas canções.
Depois de irem várias noites atrás da música do flautista, e ficarem escondidas escutando suas músicas, finalmente tomaram coragem e puderam conversar com ele e assim ficaram sabendo de sua história, da grande injustiça que fora cometida pelos adultos contra aquele jovem camponês.
As crianças ficaram bravas e envergonhadas pelo que seus pais tinham feito. Ao chegarem em casa, imediatamente brigaram com os pais exigindo que o pagamento do flautista fosse honrado, pois não conseguiam acreditar que seus pais tinham sido capazes de praticar tamanha injustiça, ainda mais contra aquele que tinha salvado a cidade da peste, livrando-a dos ratos.

VII
Os pais nunca tinham visto as crianças se comportarem daquele jeito e acharam que aquilo era um presságio de um grande malefício fruto de algum encantamento de magia negra.
Imediatamente proibiram as crianças de falar naquele assunto e deixaram-nas de castigo, trancadas em seus quartos.
À noite, chorando baixinho entre lágrimas, elas começaram a ouvir outras crianças da vizinhança assobiarem trechos das canções que gostavam e tinham aprendido com o flautista.
Ouviam um pouco aqui, outro pouco ali, e iam lembrando devagar todas as notas das canções que gostavam.
Os pais, vendo que as crianças conseguiam assobiar todas as notas das canções do flautista caçador de ratos e não o esqueciam de jeito nenhum, mesmo de castigo, ficaram cada vez mais assustados e temendo ser aquilo o presságio de um grande malefício, suplicaram novamente ao Prefeito que publicasse um decreto proibindo as crianças de assobiarem ou cantarem as canções do flautista, ameaçando as crianças que desobedecessem de ser jogadas de um precipício.

VIII
O Prefeito convocou toda a população para o meio da praça da cidade de Hamelin para anunciar o decreto numa grande solenidade.
Tinha tanta gente que as crianças não enxergavam nada do que estava acontecendo na bancada onde o Prefeito estava, pois eram baixinhas e só conseguiam ver as pernas e os sapatos dos adultos, e toda hora recebiam puxões de orelha para prestarem atenção no que o Prefeito falava.
Algumas crianças, por serem crianças e fazerem coisas que às vezes as crianças fazem, começaram então a assobiar as canções do flautista e as outras crianças que pela primeira vez se viam todas juntas, mesmo entre as pernas dos adultos, começaram a assobiar também, e ficaram contentes de lembrarem todas notas das canções que gostavam.
O Prefeito quando ouviu o som do assobio das crianças cantando as músicas do flautista caçador de ratos, sentiu-se totalmente desrespeitado em sua autoridade, e num acesso de raiva, mandou que seus soldados executassem imediatamente a ordem que acabava de ser lida.
Os soldados, com medo da fúria do Prefeito e acostumados a fazer cumprir a lei, foram pegando as crianças pelas pernas, pelos braços e pelos cabelos e levando para o precipício.
Muitas crianças não entenderam o que estava acontecendo e assobiaram mais forte. Quanto mais ouvia as canções, mais o Prefeito berrava, ordenando que os soldados cumprissem suas ordens.
Os pais das crianças não sabiam o que fazer, pois foram eles que suplicaram ao prefeito que fizesse aquele decreto. Eles entendiam que as canções do flautista poderiam ser o presságio de um grande malefício que deveria ser evitado, para o bem de todos.
Enquanto os pais ficaram perplexos sem saber o que fazer, metade das crianças da cidade foi jogada no precipício pelos soldados do Prefeito.

IX
Envergonhados e cheios de culpa, os cidadãos de Hamelin perceberam que o malefício que inventaram que era anunciado pelas canções do flautista fora de fato causado por eles mesmos.
Os cidadãos de Hamelin ficaram desesperados ao compreenderem o que tinham feito, mas ainda não sabiam o que fazer.
As crianças finalmente entenderam o que tinha acontecido e, traumatizadas pela morte trágica de seus irmãos e amigos, nunca mais conseguiram lembrar as notas da canção do flautista caçador de ratos.
Alguém, entretanto, lembrou que tudo começou por causa da magia negra da música do camponês flautista caçador de ratos.
Um grupo de cidadãos de Hamelin não teve dúvidas que tudo o que aconteceu foi um presságio de um grande malefício, subiu até a montanha onde ficava a cabana do camponês flautista caçador de ratos, trancou-o lá e incendiou a cabana para que nenhuma nota de suas canções soasse novamente.
Fizeram isso convencidos de que o flautista por vingança havia enfeitiçado, além dos ratos, metade das crianças da cidade que, dominadas pela sua magia negra se atiraram  num precipício.
E assim, a lenda do flautista de Hamelin passou a ser contada, desse jeito, pelos cidadãos de Hamelin às crianças que sobreviveram.
  

“E como me contava a história do filho do carpinteiro que os ricos mataram! Contava-a de um jeito como, acho eu, nunca foi contada, nem antes nem depois. Muitas vezes o ouvi dizer: apesar de tudo, podemos perdoar muitas coisas ao cristianismo pelo fato de ter ensinado a amar as crianças.”

“Erinnerungen an Marx” - Lembranças de Marx
Leonor Marx (filha de Karl Marx)

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Adeus ao Pedro, jovem advogado dos humilhados, filho do Paulo Teixeira e da Alice Yamaguchi

3 de junho de 2010
Nota de Falecimento
"É com pesar que informamos que o corpo de Pedro Yamaguchi Ferreira, filho do deputado Paulo Teixeira, foi encontrado hoje (3), ao meio-dia (horário local), a cerca de 40 km de distância da cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM). Uma embarcação do Exército fez a localização.
Pedro estava em São Gabriel da Cachoeira desde fevereiro deste ano atuando como advogado da Pastoral Indigenista na diocese daquela cidade.
Na última terça-feira (1º), antes do almoço, Pedro, que tinha 27 anos, saiu para tomar um banho nas águas do Rio Negro, e não retornou para casa.
Paulo Teixeira e sua família agradecem imensamente por todas as mensagens de apoio recebidas. Neste momento de tristeza e dor, todo pensamento em prece é bem-vindo."
A assessoria de Paulo presta uma homenagem a Pedro e família, resgatando parte da trajetória de Paulo e Pedro:
Aos 17 anos de idade, Paulo Teixeira deixava a cidade de Águas da Prata, interior de São Paulo, para cursar Direito na capital. O local escolhido pelo jovem foi o bairro de São Miguel Paulista, na zona leste da cidade, região que carecia de infraestrutura e recursos, bem como de atenção por parte do poder público. Paulo levava na bagagem a esperança de um mundo mais justo e solidário, usando esse sentimento para ingressar na carreira política.
Pedro Yamaguchi Ferreira, por sua vez, tinha 26 anos quando tomou uma decisão radical na vida. A exemplo do pai, ele deixou a cidade natal para tentar mudar a realidade de outro lugar. Em fevereiro de 2010, embarcou para a cidade de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas, para advogar a favor da Pastoral Indigenista na diocese da cidade.
Acompanhe o discurso de Pedro, proferido na missa de sua despedida da capital paulista:

Queridos familiares, amigos e amigas.

Em primeiro lugar, quero dedicar essa missa a minha madrinha Glaucia, que nos deixou há uma semana. Tenho um sentimento de que ela vai olhar por nós e alegrar um pouco mais o céu. As maiores lembranças que tenho dela são o seu sorriso e sua luta pela causa ambiental. De alguma forma, sinto que posso dar seguimento ao que ela tanto ensinava como geografa e professora. Essa missa é em memoria dela.
Quero agradecer a cada um de vocês pela presença nesta noite, isso representa muito pra mim e me dá muita força para seguir a caminhada. Celebramos hoje, na Igreja da Boa Morte, a vida, a esperança de dias melhores.
Sei que não estamos reunidos esta noite por mim apenas: todos os que estão aqui querem um mundo melhor para si; para seus filhos. Todos queremos paz, alegrias, amizade, justiça. Este encontro serve para renovarmos nossos sonhos.
Agradeço de forma especial as pessoas que prepararam com tanto carinho essa missa: a Marcelo da Pastoral da Juventude, a Pe Valdir e dona Vera, a toda a comunidade alianca da Misericordia, nas pessoas de Pe Enrico e Antonelo, ao pessoal da banda e a todos e todas que permitiram que esta noite acontecesse. Pe Valdir, aliás, que foi o pai desta minha ideia de ir pra Amazânia. Desde fazer contato com o bispo de São Gabriel da Cachoeira, até falar com todos os padres e irmãs para que autorizassem meu envio. Muito obrigado por toda a ajuda, Pe Valdir.
Quero saudar meus amigos da alianca da misericórdia. Por ceder essa igreja, que é vossa casa.
Saibam que vocês têm enorme influência na minha vida e nessa minha decisão: desde o primeiro momento, quando conheci um montão de jovens que moravam na favela do moinho e faziam pastoral carcerária, logo fiquei encantado com o que vi.
Eram jovens dedicando suas vidas a melhorar a realidade dos mais marginalizados: os moradores de favelas e os encarcerados.
Nas muitas vezes que estive com eles, sempre me identifiquei com aquela vocação e sentia alguma coisa arder mais forte no meu peito. Sabia que faria algo parecido.
Vocês vivem a solidariedade na essência na palavra, vivem pela causa social com compromisso e verdade.
Parabéns e muito obrigado pelo exemplo.
Quero abraçar todos meus familiares. Meus tios e tias, pais e mães pra mim, e meus irmãos. Meus primos e primas, que são meus outros irmãos e irmãs. Carrego voces no coração, assim como carrego a lembrança de meus quatro avós, os quais tive a enorme felicidade de conhecer e conviver. Sinto que eles estão comigo. Sempre os senti por perto e sei que eles nos protegem. Dedico também a eles minhas alegrias.
Brindo com todos meus amigos e amigas, da rua, de colégio, de faculdade, das lutas, da vida. Pela amizade e companheirismo. Obrigado por me ensinar. Espero que nossa amizade possa ser preservada e se fortalecer ainda mais, nos sentimentos de solidariedade com os outros, no amor pelo país, na luta por mais igualdade social, autonomia e liberdade das pessoas e tolerência com as diferenças. Tamo junto!
Aos amigos dos meus pais, que se tornaram meus amigos. Obrigado por todo exemplo de luta e dedicação a uma militância que exigiu muito tempo do lazer e conforto de vocês e de suas famílias. Carrego vocês comigo também! Muito obrigado pela presença.
Agradeço o carinho dos amigos de Carlos de Foucalt. Obrigado pela amizade e acolhida. Terei mais oportunidade de conhecer os ensinamentos de Foucalt. De alguma forma, já me sinto muito influenciado por essa espiritualidade, desde minha infância, através de meus pais, e agora, por todo esse processo da minha decisão, quando estive rodeado por vocês. Muito obrigado.
Quero agradecer, de forma muito especial aos meus queridos amigos e amigas companheiros de Pastoral Carcerária. Obrigado pela oportunidade que me deram, por confiarem e apostarem em mim. Pela amizade e paciência que tiveram comigo. E, sobretudo, pelo exemplo de fé e compromisso com a causa carcerária e humana. Vocês são verdadeiros guerreiros, pessoas iluminadas. Faltam palavras pra descrever tudo o que vivi nestes 3 anos de Pastoral. Quero, do fundo do coração, agradecer a oportunidade de ter compartilhado com vocês momentos dos quais nunca esquecerei. A presença missionária dentro da Pastoral influenciou a minha escolha. Carrego vocês, os presos e as presas, comigo. Que tenhamos dias melhores, em que nossa sociedade respeite os direitos dos cidadãos presos. Muito obrigado!
Aos meus queridos pais, também faltam palavras. Obrigado pelo exemplo, por nos ensinar a olhar pelo outro, a ter consciência do mundo em que vivemos, a lutar por nossos sonhos. Muito obrigado por serem parceiros comigo e com meus irmãos em nossas investidas, em nossos projetos.
Amo muito você, pai e você, mãe.
Aos meus queridos irmãos, todo meu amor e amizade. Vocês são pessoas especiais pra mim, trazem mais energia pra minha vida, são minha sustentação.
Espero estar tão perto de todos vocês mesmo estando longe. Carrego vocês nesta luta. Desde já peço perdão pelas vezes que precisarem de mim e que estarei ausente. Obrigado pelo apoio.
Essa minha decisão de viver essa experiência na Amazônia é fruto do convívio com a realidade dos cárceres e a realidade social em sua forma mais cruel, o lado B de nosso País: o País dos esquecidos, dos humilhados. Pude estar em contato com a miséria da miséria, a injustiça, a segregação social e racial, a dor, o esquecimento. Ter visto de perto situações desconhecidas pela maioria das pessoas, ter conhecido um País que ainda maltrata seus cidadãos, tudo isso me despertou pra necessidade de luta, de trabalho para a profunda transformação dessa realidade.
De forma geral, vejo os poderes de Estado ainda muito elististas. Não conhecem de verdade a realidade de seu povo, a pobreza, a falta de dignidade e cidadania que sofrem milhões de cidadãos, não conhecem os cárceres. Mantêm-se distantes daquilo que deveria ser a essência de seu trabalho: o bem comum do povo, sobretudo daquele que mais necessita das instituições para a garantia de seus direitos. Privilegiam o status, o poder, as facilidades materiais em detrimento dos direitos fundamentais das pessoas.
As leis, a Constituição Federal infelizmente não são as mesmas para todos. A justiça é justa para poucos. Os direitos de alguns são mais importantes que de outros. Lutar pela terra é crime. Mas não é crime a situação daquela pessoa que vive em condicoes sub-humanas nas favelas, sem dignidade nenhuma, sem comida. Furtar é crime. Mas não é crime quando o Estado amontoa milhares de presos e presas numa lata, os tortura impunemente, e viola todos seus direitos previstos nas leis. Temos dois Países: o País dos privilegiados, dos que têm acesso à riqueza, à cultura, ao lazer, aos bens materiais, às melhores oportunidades e o País dos esquecidos, que não têm direitos, não têm oportunidades, e ainda são criminalizados.
Devemos mudar, acredito que estamos avançando, mas é preciso muito mais, não podemos permitir retrocessos nas conquistas dos direitos.
Precisamos acabar com a segregação racial. Vejamos os direitos dos índios, como têm dificuldade para ser implementados. Vejamos a diferença entre os salários de negros e brancos. Vejamos os preconceitos que os nordestinos ainda sofrem no sul. A discriminação que sofrem as mulheres. Isso tudo ainda existe, é verdade, tristemente sentido no cotidiano.
Somos um País extremamente desigual na distribuição de renda. Somos top 10 no ranking de desigualdade. Num país com 200 milhões de habitantes, os 10% mais ricos detêm 50% da riqueza. Os 10% mais pobres, apenas 1% dessa riqueza. Os moradores de favelas pagam proporcionalmente mais impostos que os ricos.
4 milhões de famílias no Brasil precisam bos benefícios de uma reforma agrária. Sem contar outros milhões que vivem em condicoes sub-humanas e que precisam de mudanças.
Nosso mundo tem 1 bilhão de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, com menos de 2 dólares por dia. No Brasil, são 7,5 milhões de pessoas que vivem na linha da pobreza.
Para mudar essa realidade, precisamos democratizar cada dia mais o poder econômico e o poder político. Não permitir que o capital econômico mande nas políticas dos países, em detrimento das conquistas e avanços sociais.
Não dá para ficarmos tranquilos diante de tanta injustiça. Porque preferimos a anestesia à luta? Porque não deixemos de lado um pouco nosso conforto para pensarmos e agirmos por uma sociedade melhor?
Viajo para a Amazônia para colaborar, como cidadão e advogado, com as comunidades ribeirinhas, os índios, a questão ambiental. A discussão que está em voga hoje é a ambiental e, realmente, ela se faz necessária e urgente.
A natureza cada vez mostra com mais forças seu poder e sua revolta contra o que fazemos com ela. Utilizamo-la com interesse econômico e sem preocupação com os demais seres que nela vivem. Não nos preocupamos com o amanhã. E ela não está feliz com isso. Lembremos dos tsunamis, dos furacões, dos terremotos, dos deslizamentos.
Olhemos para nossa cidade de São Paulo, nesse mês de janeiro, o tanto que choveu. Os estragos das chuvas nos lugares mais precários. Infelizmente os efeitos climáticos atingem de forma pior os mais pobres, os que moram em áreas de risco, nas beiras dos rios.
Insistimos em desmatar nossas florestas. Somos o 5º pais no mundo que emite mais gases poluentes e 75% desses gases vêm do desmatamento. Matamos nossa floresta para alimentar o mercado externo, americano e europeu. Faz sentido isso?
Do que adianta exercitarmos uma consciência ecológica se não questionamos nosso próprio anseio consumista que desgasta a capacidade da natureza e acelera a degradação do meio ambiente? Devemos exigir de nos sacrifícios pelo bem da sobrevivência da natureza e nossa também.
Apenas para exemplificar, com situações cotidianas: será que precisamos ter 50 pares de sapatos em nossos armários? Dezenas de peças de roupas que depois ficam armazenadas? Será que todos precisamos de carro em detrimento do transporte público? Precisamos tomar duas vezes ao dia banhos de 30 minutos? Devemos pensar que nosso padrão de consumo gera desigualdades e agride a natureza, e é preciso abdicar desse modelo.
Sinto nessa minha escolha um pouco de negação, ainda que temporária, do modelo civilizatório ocidental consumista e destrutivo em que vivemos – e, pior, que achamos bom. Desejo buscar na natureza, com os índios, valores humanos que se sobreponham às ilusões da civilização.
Penso que, diante de toda a realidade miserável que pude ver, não posso ficar inerte, tocando minha vida como se a vida do outro nada tivesse a ver com a minha. Me sinto na obrigação de colaborar com nosso povo.
Não é preciso ir até a Amazônia para mudar essa realidade social brasileira. A cidade de SP está cheia de problemas a serem resolvidos, e todos vocês podem colaborar para mudar essa situação. Visitem a favela do moinho, o jardim pantanal, uma unidade prisional. Certamente lá existem muitos problemas e as pessoas precisam de ajuda!
Mas, nem só de lutas vive o homem. Quero viver, escrever uma gostosa poesia de minha vida. Poder respirar um ar puro, contemplar a mata e os animais, estar em contato com culturas diferentes, jogar mais futebol, estar no paraíso natural. Como diz a poesia do sambista Candeia, cantada na voz de Cartola: “deixe-me ir, preciso andar, vou por ai a procurar, sorrir pra nao chorar. Quero assistir ao sol nascer, ver as águas do rio correr, ouvir os pássaros cantar, eu quero nascer, quero viver”.
Para terminar, dois lindos poemas do nosso querido dom Pedro Casaldaliga, grande figura que me inspirou profundamente e a quem tive a enorme felicidade e privilégio de conhecer em São Felix do Araguaia:
Pobreza Evangélica
Não ter nada.
não carregar nada.
não poder nada.
e, de passagem, não matar nada;
não calar nada.
Somente o Evangelho, como uma faca afilada,
e o pranto e o riso no olhar,
e a mão estendida e apertada,
e a vida, a cavalo, dai.
E este sol e estes rios e esta terra comprada,
para testemunhas da revolução ja estourada.
E mais nada.
Epilogo Aberto
Atenho-me ao dito:
A justiça,
apesar da lei e do costume,
apesar do dinheiro e da esmola.
A humildade,
para ser eu mesmo, verdadeiro.
A liberdade
para ser homem.
E a pobreza
para ser livre.
A fé, cristã,
para andar de noite,
e, acima de tudo, para andar de dia.
E, seja como for, irmaos,
eu me atenho ao dito:
a Esperança.
Deixo aqui um convite para que todos venham visitar a Amazônia. Para quem quiser conhecer o paraíso. Não se arrependerão. As portas lá sempre estarão abertas a vocês. Espero vocês numa visita.
Muito obrigado por virem, quero dar um abraço em cada um de vocês!

Quando Paulo Teixeira fez aniversário, no mês passado, Pedro enviou a seguinte mensagem, à beira do rio Negro: