domingo, 10 de janeiro de 2010

Sagarana Sacarina








Villén Flusser critica João Guimarães Rosa por abandonar o açúcar pelos adoçantes artificiais


Já ouvi vários lusitanos referirem-se ao português falado no Brasil como "um português com açúcar". O açúcar adoça mas não acrescenta um sabor próprio e mantém a individualidade do ingrediente adoçado. Com os adoçantes artificiais é diferente: todo mundo que já usou teve essa experiência, umas gotinhas a mais e, depois de uma doçura excessiva, vem um resíduo de gosto amargo e metálico na boca.  Bem, foi esse gosto artificial amargo que o filósofo confessou ao escritor sobre os seus incensados neologismos. Essa notável crítica de Villén Flusser a partir das muitas conversas que teve com João Guimarães Rosa faz, inadvertidamente [?], um interessante paralelo entre a "tecnicização" do verdadeiro "eu" roseano, isto é, a vitória do "lingüista" sobre o "contador de estórias", e a substituição dos adoçantes naturais como o mel e o açúcar pelos adoçantes artificiais como o aspartame, o ciclamato e a sacarina.

"A embriaguez musical de Rosa, a sua fixação sobre o "a" por exemplo, ou o efeito hipnotizante que sobre ele tinha o diminutivo "-im", a constante onomatopéia à qual se rendia, tinha para a própria gente [ Flusser ] o sabor de uma doçura excessiva, porque parecia ser resultado de um abandono fácil à essência melódica da língua portuguesa. Os neologismos roseanos (tão admirados pelos seus críticos) eram, para a própria gente [ Flusser ], muito ambivalentes e perigosamente próximos de jogos de palavras baratos. Pela razão seguinte: Rosa era essência incorporada da língua portuguesa, mas tinha também vasto conhecimento de múltiplas outras línguas. Tal conhecimento, no entanto, era vasto sem ser profundo. De maneira que os neologismos roseanos, embora perfeitamente adequados ao português, roçavam apenas a superfície de palavras nas quais na realidade vibra um mistério profundo. Que uma unica palavra sirva de exemplo: Sagarana. Sem dúvida, a palavra "soa" portuguesamente, e enquadra-se com facilidade na sintaxe portuguesa. Além disso tem a melodia do "a" tão fervorosamente amada, e por isto mesmo evoca o sânscrito com todas as suas conotações misteriosas. Mas a palavra "saga" no baixo germânico (vagamente "mito"), tem uma riqueza inesgotável que se perde em Rosa, e o sufixo tupi "-rana" sugere um plural aglutinante igualmente perdido. O que resta é apenas uma bela maneira de dizer: "vários mitos". E a gente sente por detrás disto deliberação intelectual que deixa gosto amargo na boca, a despeito de tanta doçura. [...] De um lado, o verdadeiro "eu" roseano, imerso no épos [dizer inspirado e mítico], vivendo nele e "viajando" com ele; de outro lado o "grande escritor Rosa", manipulando sempre mais perfeitamente [tecnicamente] o épos, e com isto o verdadeiro "eu". Uma "alma", a do escritor, devorando a outra "alma", a do verdadeiro Rosa. Até que a Academia de Letras tenha coroado tragicamente tal festim antropofágico. A "arte", isto é, o artifício, a artimanha e a mentira triunfaram sobre a verdade."

Flusser, Villén. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2007. pp.135-137.

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