terça-feira, 24 de novembro de 2009

Hipócrates: viver é poder cozinhar, com saúde, é saber temperar




HIPÓCRATES: viver é poder cozinhar, com saúde, é saber temperar






Hipócrates foi o maior representante da Escola de Medicina de Cós (460 a.C.– 377 a.C.).

A escola de Cós se contrapunha à vizinha Escola de Medicina de Cnide que baseava-se na identificação das diferentes doenças e dos diferentes órgãos humanos que podiam adoecer, buscando os tratamentos adequados a cada doença particular e a cada órgão particular (semelhante ao que se pratica na medicina moderna).

A escola de Cós, ao contrário, praticava a medicina que concebia a doença como uma afecção geral do organismo, ou seja, para estes médicos, não existiam “doenças”. Existia apenas o doente e sua evolução particular.

Hipócrates concebia o médico apenas como um auxiliar da natureza. Só a natureza é que podia produzir a cura. Só a “vis medicatrix”, a força curativa da natureza, é que atuava positivamente na evolução do doente e agia no sentido de restabelecer a Eucrasia, a perfeita proporção (acento, crase) entre os quatro "humores", única a cada indivíduo, que proporciona o estado saudável.

Os quatro humores não representam apenas estados imanentes do indivíduo, mas seus fluxos internos e entre seu corpo e seu ambiente. Em todos os momentos, estão “entrando e saindo” do corpo sons, calores, frios, ventos, águas, comidas e excreções. O corpo, em todos os momentos, está em alguma forma de exercício ou repouso.

Assim, os elementos quentes e secos, correspondendo ao Fogo, produziam fluxos de bílis amarela (o humor colérico); os elementos quentes e úmidos, correspondendo ao Ar, produziam fluxos de sangue (o humor sangüíneo); os elementos frios e úmidos, correspondendo à Água, produziam fluxos de fleuma (o humor fleumático); os elementos frios e secos, correspondendo à Terra, produziam fluxos de bílis negra (o humor melancólico).

A Discrasia, ou o excesso humoral, significava tanto a concentração, o acúmulo de um determinado humor numa parte do corpo, como a falta desse mesmo humor em outra determinada parte do corpo, causando dor e doença.

A força vital é, para Hipócrates, um “calor interno inato” de cada indivíduo. Esse calor interno inato é o único capaz de “cozer, cozinhar” os humores “crus”. O acúmulo humoral produzia doença por que o corpo sofre com a presença de um humor no seu estado puro, bruto, cru. A saúde, na concepção hipocrática, é a capacidade contínua do corpo de “temperar” os humores crus e eliminar os excessos humorais. Os humores também são chamados “temperamentos”.

A ação do médico, portanto, dependia de sua capacidade de identificar, pela observação minuciosa do comportamento global do indivíduo, de sua hereditariedade e de seu meio ambiente, qual era a evolução da doença, antecipando as terapêuticas adequadas para auxiliar a força curativa natural a restabelecer as condições saudáveis.

Hipócrates identificava três fases ou estágios típicos da evolução da doença: a fase da Crueza (Apepsia) onde se manifestavam os sintomas dos excessos humorais; a fase da Cocção (Pepsis) onde se manifestava a capacidade do corpo de “cozer, temperar” os excessos humorais e a fase da Terminação (Crisis) onde se manifestava a resolução do excesso humoral pela cura (com sua eliminação bem sucedida pelo corpo), pela apóstase (com sua transferência para outra parte do corpo mais capacitada a um novo processo de Cocção), pela lise (com a dissolução gradual do excesso humoral) ou pela morte (que era concebida como a interrupção/paralização da Cocção, a perda definitiva do “calor interno inato”).

A terapêutica hipocrática, baseada no acompanhamento minucioso da evolução da doença e no princípio do "primum non nocere", primeiro não prejudicar, buscava auxiliar a força curativa natural dando a cada coisa pelo seu contrário” (a fome se cura comendo, a sede bebendo, a fadiga pelo repouso, etc.). Seu arsenal terapêutico fazia uso de caldos e papas, em geral de cevada, mel (também na forma de hidromel, mistura de mel e água, ou oximel, mistura de mel e vinagre), diferentes tipos de vinhos e plantas medicinais (chás), purgativos, ungüentos, sangrias, banhos, exercícios e repousos. Na medicina hipocrática Dieta significava terapêutica onde eram indistinguíveis remédios, alimentos, exercícios e repousos.

A terapêutica não envolvia apenas o doente, mas suas relações com a sociedade e seu meio ambiente. Hipócrates foi o primeiro a caracterizar claramente as Epidemias (título de um de seus livros) como processos de doenças que envolvem a sociedade e o meio ambiente.

No entanto, a principal arte do médico era o correto prognóstico da evolução da doença, que dependia da observação do comportamento global do doente, principalmente para a antecipação dos dias críticos (dos dias em que ocorreria a fase de Crisis) pois era também a aplicação no momento adequado da evolução da doença que garantia a eficácia do tratamento.

Hipócrates e a escola de Cós, desenvolveram um forte sentido ético do exercício da medicina, reagindo contra os diversos tipos de aproveitadores e charlatões.

No seu famoso Juramento, o médico obriga-se a manifestar gratidão aos que lhe ensinaram sua arte, compromete-se a usá-la, unicamente e sem nenhuma exceção, em benefício dos pacientes, obriga-se a conservar puras sua vida e sua arte e a não revelar os segredos que lhe forem revelados em virtude de sua profissão.

Um de seus Aforismos aponta para a humildade da disposição intelectual do médico:
“A vida é curta, a arte é longa, a oportunidade é fugaz, a experiência é enganosa, o julgamento é difícil.”


Os médicos modernos, juram por Hipócrates, da Escola de Cós, mas praticam pela Escola de Cnide.

Fonte: TAVARES DE SOUZA, A. Curso de História da Medicina: das origens aos fins do séc. XVI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981. pp.48-67.

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